Avançar para o conteúdo principal

O DEMÔNIO DA FÉ


Naquele dia, ninguém pensou em viver. As carnes estavam mutiladas por picadas inflamadas, cujo veneno, misturado ao sangue, gotejava através das feridas abertas. Os olhos, turvos e cansados, dirigiam-se à imagem de um ofídio empoleirado, uma serpente esculpida em bronze, pendurada numa haste e erguida pelas mãos cansadas de Moisés. Bastou um olhar, apenas uma leve espiada, para que alguma coisa fechasse aquelas chagas. Os meninos levantaram-se do colo de suas mães, desembrulhando o corpo dos panos, e começaram a correr pelo deserto poeirento; os velhos tocaram suas feridas, agora já secas, e sentiram as veias vibrarem novamente. Homens e mulheres estavam curados.

Ninguém conseguia compreender como o simples ato de olhar para uma imagem estática seria capaz de salvar o corpo inteiro da picada de uma serpente peçonhenta. O veneno era mais poderoso que o bronze; inda assim, o inesperado aconteceu. Olharam para a imagem, e então viveram. Alguns, talvez, acharam que seria simplória demais a ideia de se salvar a vida por uma ação tão trivial. Afinal, não se exige quase nada de um indivíduo para que ele possa mover os músculos dos olhos; estes, achando-se demasiado doutos em sua descrença, foram estúpidos o suficiente para não fazerem uma coisa que julgavam estúpida — e que de fato poderia ser — mas que salvar-lhes-ia a vida, caso usassem o raciocínio, abrissem mão do orgulho e pensassem com o mínimo de simplicidade. Os racionais morreram em sua irracionalidade.

Os que olharam, todavia, sobreviveram.

De fato, a explicação dada para o fenômeno foi praticamente nula e inconsistente no momento; os efeitos, contudo, superavam a explicação, e todos aceitaram a cura. Tudo só seria compreendido milhares de anos mais tarde, quando o tipo encontrasse o antítipo.

Na cultura judaico-cristã, serpente é o símbolo do demônio. Isto é mais do que claro. Há toda uma mística tipológica por detrás desta representação (cf. Ap. 12:17-19). A serpente havia picado os hebreus, no entanto, era a mesma que oferecia a cura. Mas não era o demônio que estava preso ao madeiro — na verdade, era justamente o oposto.

Séculos mais tarde, sob a sombra noturna do olival, Cristo diria a Nicodemos:

“Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, convém que o Filho do Homem seja levantado — para que todo aquele que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (S. Jo. 3:14 e 15).

Jesus era a serpente, não o demônio. Como explicar essa aparente contradição? Ora, se por meio do pecado houve morte, por meio da morte, o pecado cessou; a mesma morte que trouxe a perdição, trouxe a salvação. Ao morrer sobre a cruz, Jesus tornava-se o que nós nos tornaríamos, caso não fôssemos liberados de nossa justa condenação — um reles pecador, abandonado pela mão de Deus, condenado a sofrer a cólera intempestiva da danação eterna. A justiça que sofreríamos, no entanto, caiu injustamente — e propositalmente — sobre Cristo; e ao olhar para a serpente maior, as menores deixam de rastejar sob nossos pés.

“Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus.” (2 Cor. 5:21).

Ele Se fez demônio para que fôssemos santos. Sua condição provisória, contudo, não foi suficiente para arraiga-lo no seio de Satanás; ao terceiro dia, ergueu-se do Xeol como o poderoso Vencedor, restituindo Sua condição divina. E agora, feridos pelas cobras, podemos suspender nossos olhos em direção à serpente do Calvário e sermos curados de nossas moléstias.

Somos convidados a olhar para Cristo. Não precisamos nos pregar em hastes de bronze, pois uma só já basta para que encontremos o objeto de nossa afeição. Tudo, portanto, torna-se extremamente fácil; na verdade, fácil demais — é só olhar, e tudo estará resolvido. Alguns de nós ergueremos nossas cabeças e sairemos com vida; já outros, talvez por acharem fácil demais, agonizarão de febre em sua mortalha.

“A cruz abre seus braços aos quatro ventos; é o poste sinalizador dos viajantes livres.” (G. K. Chesterton).


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Meraki e Panta

Meraki   ( μεράκι) é considerada uma das mais belas palavras da língua grega. Significa: “dar parte de si em algo” ou “fazer com a alma”.  Panta  ( τα παντα)  é uma palavra que também vem do grego e significa “tudo" ou “todas as coisas”.  Você deve estar se perguntando onde quero chegar com tudo isso... Ao realizarmos determinada tarefa, colocamos uma parte de nós mesmos naquilo. Se tocamos instrumentos, escrevemos textos, cantamos músicas, pregamos mensagens, deixamos um pouco de essência própria naquilo que fizemos. A palavra que se encaixa neste aspecto é, claramente, Meraki. Um dia, Jesus Cristo deu tudo de Si por cada um de nós. Ao morrer na cruz, entregou-se totalmente por amor aos seus.  Em Isaías 53:5 está escrito:  "Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados." Panta caracteriza a atitude do Messias; Ele concretizou o ...

Quando nos vênus, juro a marte.

  O poeta brasileiro Paulo Leminski tem uma das frases mais conhecidas do universo poético: "Quando nos vênus, juro a marte". A princípio parece só uma frase, um jogo de palavras para dizer que quando grandes amores se encontram, eles se amam intensamente. Contudo, poesia não é algo para se fazer uma análise superficial. Como diz o poeta Frederico García Lorca: "Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas".  Então o que tem de tão especial? Qual o mistério? Calma!  Para entender melhor vamos voltar para a Grécia antiga. Na mitologia, Marte era o deus da guerra e Vênus a deusa do amor. Então, levando isso em consideração, poderíamos interpretar esse jogo de palavras como: "Quando eu te encontrar, prometo lutar muito por nosso amor".  Além desse, outro detalhe interessante nos é mostrado nessa frase. Vênus é o segundo planeta do sistema solar, já Marte é o quarto. Eles são separados por um planeta chamado Terra, o nosso mun...

PARAFILIAS

E Deus disse: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra." Gênesis 1:28 Quando Deus em sua suprema onisciência e bondade decidiu criar a humanidade, Ele não a fez do acaso ou sem um propósito, acima de tudo Deus nos criou para sermos mais semelhantes a Ele e desfrutarmos da benção que é o amor e o relacionamento, a interação.  O inimigo de Deus sempre quis usurpar o trono divino e ter para si a glória e a adoração devidas a Cristo (Isaías 14:12-14). Ao ser expulso do céu, Lúcifer começou um plano de destruição da imagem Divina, ele não se contentou em ter levado à queda uma terça parte dos anjos celestiais, decidiu então tentar a humanidade e deturpar a imagem de Deus nesses seres recém criados. O objetivo de Satanás é destruir na humanidade a imagem de Deus.  Quando paramos para analisar biblicamente a definição Divina para o casamento, a...