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“Sim, eu o matei. E se pudesse, mataria de novo.”

SIM, EU O MATEI. E SE PUDESSE, MATARIA DE NOVO. 

O quarto fedia a cigarro e álcool. Um pouco de luz escapava por entre as frestas da janela semi-aberta, mas a luz ali não era suficiente para dissipar a escuridão. 
Uma mulher estava sentada numa cadeira  velha e de pernas frouxas; suas mãos estavam embebidas de sangue, que também lhe escorria pelas pernas. 
E um pouco mais adiante, a dois ou três palmos de distância, havia um cadáver estirado no chão, caído de bruços contra o piso. 
“Que farei com ele, agora?”, ela pensava, tranquilamente, enquanto mastigava um pouco de fumo. “Diabos! Eu o matei mesmo!” 
E começou a rir. Riu de forma estridente, com a mão direita assanhando os cabelos já desgrenhados de uma noite insone. 
“Ele estava descobrindo…”, ela pensava enquanto erguia-se languidamente da cadeira, chegando mais perto do cadáver. Deu-lhe um chute. “Não me restava outra escolha. Não é?”
Silêncio total. A qualquer momento, a polícia poderia chegar. Certamente, tudo estaria perdido. Ela precisava fugir. 
Limpando rapidamente as mãos sob uma água minguada que gotejava da torneira de uma pia, tirou de si o máximo que podia daquelas manchas. E já ia, após olhar de relance o corpo mais uma vez, cruzando a porta que dava para o externo; mas de repente, e sem nenhum prévio aviso, um som estridente fez a mulher saltitar. Alguém havia arrombado a porta da frente. Três policiais corpulentos cruzavam o corredor em direção a cena do crime. 
Não havia mais jeito. Rendeu-se. Levaram-na da casa até a delegacia. Quanto ao corpo e à casa, ambos foram, logo após, tomados por uma série de especialistas que, dali em diante, passaram a se envolver naquele estranho crime. 
Mais tarde naquele mesmo dia, levaram a mulher, tão suja e tão notoriamente tresloucada, para um interrogatório na antessala. Incólume, inalterada e obstinada, ela se sentou na frente de quatro homens sérios e bem vestidos. 
“De quem era o corpo?”, perguntou um deles. A mulher deu de ombros. 
“Do meu pai”, respondeu ela, friamente. 
“Como ele morreu?”, perguntou-lhe outro. 
“Facada”, respondeu ela da mesma forma que anteriormente lhes havia afirmado. “Eu esfaqueei ele.” 
Eles se entreolharam, embasbacados. 
“Então você não nega que matou o seu pai?” 
“Claro que não”, disse ela, sorrindo friamente. “Fui eu mesma que o matei.” 
“Matou o seu pai?” 
“Sim.” 
“E o que o seu pai fez para que você o matasse?” 
“Nada”, deu de ombros. “Ele não fez nada…” 
Um instante silencioso. 
“Ele…”, ela retomou sua fala, olhando constantemente para o chão. “Ele era muito bom. Muito boa gente. Correto. Fazia tudo certo. E eu… eu sempre fiz tudo errado! Era filha dele, ele me amava… mas queria que eu fosse igualzinha a ele. E eu não queria.” 
“Mas por que o matou, senhora?” 
Ela sorriu novamente, crispando as mãos. 
“Já disse.” 
“Não disse.” 
“Sim, eu disse.” 
Outro hiato breve. 
“Então ele nunca te fez nada, era um pai bom e correto… mas mesmo assim você o matou. O matou friamente, com facadas… porque ele não queria que você fizesse o que estava fazendo. Não queria que você vivesse… como uma criminosa, digamos assim. Ele só queria o seu bem. E então… você o matou!” 
“Sim”, respondeu ela. “Eu o matei. E se pudesse, mataria de novo. Eu não estou arrependida.” 
Pode parecer demasiado tétrica e malévola, fria, intempestiva e doentia a atitude desta mulher. A essa altura, é possível que você, leitor, esteja querendo entender o que a levou a agir tão perfidamente. Contudo, por mais que se esteja repugnado com tamanha vileza de caráter, chegou a hora de dizer: essa mulher é você. Essa mulher sou eu. Essa mulher somos todos nós. 
Tínhamos um pai. Ele nos amava. Era perfeito. Conferiu-nos felicidade plena. Sua única exigência era que não seguíssemos o caminho do mal. Que o pecado não fizesse parte de nossa vida. Mas nós fomos maus. Doentes. Assassinos. Nós matamos nosso Pai. 
Ele era inocente. Nada tinha feito para morrer. A única coisa que Ele queria era o nosso coração. 
Mas nós não fomos capazes de lhe dar. E ainda hoje, não somos. Continuamos obstinados em nossa pútrida espiritualidade. Não estamos arrependidos. Nós matamos nosso Pai; e se fosse possível, O mataríamos de novo. E de novo. E continuamos a feri-lo quando continuamos em nossas vidas criminosas. 
Contudo, nosso Pai é Deus. Mesmo que o tenhamos matado, Ele vive. Ressuscitou dos mortos, e ainda hoje, apesar de nossa constante apostasia, nos ama com a mesma intensidade de quando ainda éramos perfeitos. 
Qualquer um pode ser salvo. Inclusive você. Todos ferimos nosso Pai alguma vez; mas podemos agora tomar em nossas mãos o nosso destino. Faríamos tudo outra vez? Só você é capaz de responder.

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